quinta-feira, 23 de abril de 2009

Lei do Desábito


A sua pele renegava o calor que sobre ela se abatia, tal como um anticorpo rejeita uma bactéria. Vinda de onde tudo era gélido e mórbido - o seu refúgio, a que chamava usualmente de casa -, o quente não era a sua sensação favorita. Sentia-se como que a derreter, a pele ardia e só lhe faltava crepitar para se achar a ferver no Inferno.
Os olhos fixavam-se nas ondas verticais que pareciam nascer do solo, como flores infinitas e curvilíneas, mas caducas como a sua própria vida.
Dentro do peito, onde já não batia nada senão um martelo de calçada (há muito que o órgão musculado tinha sido substituído por algo mais pesado, seco, crespo e que no interior não tinha nada, a não ser mais do mesmo), a um ritmo cada vez mais acelerado, apoderado por um mal-estar que se devia à exposição a um elemento desconhecido.
À sua volta, pelo que lhe parecia ver, o Mundo girava a uma velocidade vertiginosa, dando a sensação que estava preso à ponta da fisga de uma criança que, a qualquer momento, podia atirá-lo ao amigo de brincadeiras de rua. As imagens, em aparente contradição, eram desfocadas e lentas, como se se arrastassem pela linha do tempo, os sons eram distorcidos e fugiam da boca como saltimbancos da vida sedentária.
Os pingos de suor começavam a percorrer a sua face, ao mesmo tempo que a boca lhe parecia um deserto sem Oásis ao alcance. Pensou que estaria a perder, ao longo da face, todos os líquidos que neste momento escasseavam na sua boca. Um problema de equilíbrio que, no entanto, apenas lhe afectava a nível mental.
As pupílas contraíam-se e as lágrimas, por sua vez, abundavam nos seus olhos. Chegou então à conclusão que Oásis tinha dois, apenas deslocados do seu local normal (não que devesse ter os olhos na boca, ou tal significaria gula, o que Fátima não tolerava. Nenhum entre os sete, aliás).
Devido ao seu carácter ríspido e exigente, o verbo desistir nunca se tinha encontrado na decacentésima vigésima quinta página, na segunda coluna, na quadragésima segunda linha de um qualquer dicionário de bolso, mas agora que o seu corpo parecia estar desprovido de qualquer existência, aparentando ter sido abandonado por si própria, o verbo lutar é que afogou entre o suor. Deixou-se então cair no chão, tal qual uma árvore que cai na floresta, quando ninguém se encontra por perto.
A luz nunca lhe tinha criado tanta aversão. A luz nunca lhe tinha parecido tão forte e natural.
Insensível e aparentemente impenetrável, Fátima, que sempre vivera nas sombras, onde o Inverno durava, normalmente, 365 dias por ano, tinha enfrentado pela primeira vez o Sol. Presenciava, pela primeira vez na sua existência, a alteração da cor, do florido, da luz. Era então Verão, algo como nunca tinha visto. Mas tal demorou ela a perceber, assim como demorou a voltar a si. E ainda mais tempo do seu Verão demorou a ser encontrada, como uma carcaça deixada para trás por um predador - não sendo, porém, carcaça alguma. A cidade estava deserta e afinal, será que se ouve a queda de uma árvore, quando ninguém está por perto?

domingo, 5 de abril de 2009

Momento #9


O corpo é um artefacto ridículo, como as cartas de amor. E ambos nos aprisionam a alma, quando ela é como as cantigas.