domingo, 29 de março de 2009

Ver passar a vida faz-me tédio


O ambiente pesado na pequena vila fazia com que qualquer um se sentisse incomodado. Os sucessivos ataques à integridade e vida humanas tinham abalado a pacata sociedade de Izeda, como se a primeira letra do seu nome fosse vencida numa batalha e substituída pela primeira vogal. Sim, azeda. Era este o adjectivo que, neste momento, melhor caracterizava aquele lugar.
Naquela noite tinha havido um assassinato e o grupo de homens engravatados e fardados de azul continuava numa inquietação quase doentia.

Do outro lado da vila, Ester inseria, lentamente, a chave na fechadura da porta de sua casa. Um movimento cansado e que a fartava de tão repetitivo que se tinha vindo a tornar. Pisou o soalho de madeira cuidadosamente, em bicos de pés, com uma delicadeza tal que parecia caminhar sobre nuvens de Verão. Os seus cabelos ondulados e estonteantemente loiros caíam-lhe pelos ombros e iam de encontro às alças de um vestido vermelho, que acentuava as curvas do seu corpo de uma forma perigosa. Os carnudos lábios pintados de vermelho, complementados pelos olhos devidamente realçados, davam-lhe um ar irresistível. Na mão esquerda carregava um sobretudo preto e uns sapatos de salto da mesma cor, que havia descalçado com medo de fazer barulho. Na outra mão caíam-lhe, de forma desleixada, as chaves com que tinha aberto a porta. Toda aquela indumentária era propícia à provocação do sexo oposto, vertiginosamente sensual, tal como a personalidade associada ao seu nome faria prever.
Resvalou sobre uma cadeira, entregou o seu corpo a todo aquele sentimento de cansaço. Sentiu-se a adormecer e dirigiu-se à cama. Dormiu até ao nascer da maior estrela.

Analisaram a cena do crime. Para além de um cheiro a perda e a pútrido, do espaço ao mesmo tempo tão vazio de tudo e cheio de recordações e da própria vítima, não parecia haver nada de relevante ali. Por momentos, os investigadores desejaram que as paredes pudessem falar e acusar o responsável por tal desgraça.
Após várias horas de investigações inúteis do local, Edgar, um dos inspectores responsáveis pelo caso, reparou numa marca de saltos nas costas da vítima. Irrelevante. Seriam centenas as mulheres da vila e mais ainda os sapatos que teriam um salto do género. Desistiu. Recolheu todas as suas ambições e estreitou os seus horizontes, contrariando a sua própria origem etimológica. Selaram o local e desistiram, pois nunca teriam como encontrar culpados.

Ester levantou-se e olhou-se seriamente ao espelho, sem desviar o olhar e quase sem pestanejar. Os olhos encheram-se-lhe se lágrimas e o queixo tremeu repetidamente. Levou as mãos à testa e quebrou, deixou-se cair e soluçou de dor durante minutos a fio. Quando a fonte secou, ergueu-se e vestiu-se de luto. Sobre os cabelos colocou um lenço espesso, preto e colocou óculos pretos, como os que eram vistos a adornar a face dos que choravam a perda de alguém num velório. Não era possível reconhecer-lhe a cara.

Nas instalações das autoridades, sentiu-se, repentinamente, um odor feminino e sensual. Todos os homens se sentiram claramente atraídos e rendidos a tais encantos. Parecendo deslizar pela sala, entrou Ester, com a cabeça baixa e com uma mão a segurar o lenço junto ao pescoço.
Sentou-se e mandou chamar o inspector responsável pela tragédia que tinha ocorrido a noite anterior.
Edgar sentou-se diante dela. Sem lhe dar tempo para cortesias, Ester rematou "Fui eu, inspector. Fui eu...", "Foi você o quê?", "Fui eu a responsável pela tragédia de ontem", Quer que acredite que foi você quem cometeu uma barbaridades daquelas?", disse Edgar rindo, considerando a afirmação de Ester uma piada de má natureza. "Quero. Se não tivesse sido eu, como saberia então que ele tinha uma marca de salto nas costas? Deste salto", Ester colocou sobre a mesa os sapatos que tinha calçado no dia anterior. O inspector olhou-a incrédulo e, de forma a tentar tirar as dúvidas, disse "Foi você que matou o...?", ao que Ester, sem hesitar, respondeu "Sim, fui eu quem matou aquele cabrão. Nunca gostei dele e ele sempre me atormentou. Filho da puta do Tédio!"

quarta-feira, 25 de março de 2009

O passado é a chave do presente.

Irónico como a manipulação chove como água em pleno Inverno. Somos constantemente atacados por cartazes, notícias que invadem a nossa casa, sem utilizarem para tal uma porta ou janela, deduções ou acusações políticas, medidas que, quando são anunciadas, estão geralmente temperadas com hipérboles. Tentam subornar o nosso pensamento. Sim, tentam formatá-lo das nossas ideias e inserir aquelas que querem que sigamos.
Tantos são aqueles que já estão cegos e não vêm que as amarras já nos voltam a prender as pernas, como há 40 anos atrás. Não se trata só de apertar o cinto, trata-se de apertar isso que nos prende, até nos desmembrarem, até que não tenhamos mais força para nos erguermos.
E acreditamos, na generalidade, que estamos no bom caminho, que melhores dias chegarão, enquanto não nos apercebemos que a porta se fecha lentamente e deixa o último raio de luz do lado de fora. E ficamos impávidos, sem reacção. E deixamos que nos controlem. E deixamos que nos levem tudo o que temos. E deixamos que nos levem as palavras. E caímos na mesma esparrela dos nossos antepassados. E rezamos por uma chuva de cravos. E comemoramos no final. E tentamos construir um melhor sistema, mas a verdade é que colocamos sempre no lugar mais alto aqueles que depois nos espezinham e que nos inserem neste ciclo vicioso. A culpa é do actualismo geológico, é dos ciclos que enfrentamos a toda a hora, da cobardia que nos impede de lutar contra o que achamos estar incorrecto.
Porém, já dizia Andriano Correia de Oliveira, "O trevo tem quatro folhas, quatro sílabas liberdade" e a união...essa faz a força.

segunda-feira, 16 de março de 2009

And after all...






Nunca ninguém teve um sorriso mais puro

Momento #8

Diz a sabedoria popular que, quando se fecha uma porta, abre-se uma janela.
A corrente de ar fechou-me a porta, logo agora que mandei soldar todas as janelas.