
Misturou todas as cores que compunham o seu pensamento. Obteve uma parede amarela, como a fome que o consumia. Lembrou-se então da Natureza que tanto amava e a parede dividiu-se numa outra fracção verde. Cor de esperança. Cor que associava a algo que já não tinha fazia muito tempo. Desagradou-lhe aquela imagem, portanto. Juntou-lhe um pouco de paixão, paixão pela vida (mas de que lhe serviria a paixão, se no seu peito não guardava um coração?); misturou o azul do mar, porém, porque pintaria algo que retratasse o mar, se o mar nunca tinha visto, se o seu aroma nunca tinha lambido dos lábios, se o cheiro a maresia nunca lhe tinha sido dado a conhecer? Porque pintaria algo cuja forma desconhecia?
As lágrimas vieram-lhe aos olhos. Julgava-se uma pessoa dotada de sabedoria, mas nunca as ondas lhe tinham ido beijar os pés, nunca a Natureza lhe tinha roubado um sorriso, nunca a terra lhe tinha dado alimento, nunca a vida tinha sido vida para si.
Ia-se esvaziando à medida que transpunha toda a sua essência para a tela, que outrora tinha sido parede vazia. Pensou em manter um pouco do branco à vista, branco da paz. Seria hipócrita se o fizesse, pois a pomba branca era animal que nunca tinha feito parte do seu imaginário e, consequentemente, a palavra “paz”, era desconhecida no seu vocabulário que, mesmo sendo pouco vasto, era suficiente para descrever tudo o que o compunha.
As lágrimas contrariaram, então, a gravidade e borraram a pintura. Ao mesmo tempo, vestiu-a com um veio roxo, cor que o caracterizava de uma forma completa, simbolizando a tristeza. Porém, a única cor com a qual se identificava, perdeu-se, camuflou-se no meio de tantas outras que já vestiam a sua tela, sem que desse por isso.
Dirigiu-se para a outra ponta da área e sentou-se no chão a observar a parede branca, que já não o era. Olhou atentamente e verificou que o preto, que nunca tinha sido pintado, começava a surgir no local onde tinham caído as suas lágrimas. Alastrou-se como uma doença maligna, como os ramos de uma trepadeira por toda a pintura.
Franziu as sobrancelhas e fechou lentamente a boca, que se lhe tinha aberto quando o negro o invadiu. Então, o preto, que já se tinha apoderado de toda a parede e, portanto, de todo seu interior, foi-se convertendo num espaço vazio.
O medo do fim percorreu-lhe de alto a baixo, puxou os joelhos ao peito, segurou-os com as duas mãos e enterrou a cabeça no interstício que tinha ficado livre. Fechou os olhos.
Um vento fê-lo arrepiar-se, um cheiro característico despertou a sua atenção, um sabor salgado fez com que levantasse a cabeça. Abriu os olhos. Estava junto ao mar e uma onda veio beijar-lhe os pés. Por momentos, soube o que era o mar e a sua forma, teve esperança de poder permanecer naquele espaço de tempo para sempre, amou a vida com todo o coração que batia no seu interior, sentiu paz de alma, alimentou-se do momento.
Todas as cores estavam presentes, excepto o roxo da tristeza. Foi feliz durante um pequeno grande intervalo de tempo.
Arregalou os olhos e o negro voltou. Abriu-os e olhou em volta. Nada viu. O seu corpo estava desprovido de qualquer veste, o seu peito isento de coração, o tempo livre de esperança ou paz, o seu organismo estava limpo de alimentos e, no entanto, não latejava de fome. Na realidade, não tinha nada.
Na volta, foi tudo o que sempre tentou pintar, tudo o que sempre viu, tudo o que sempre foi: nada.
Quadro: Jackson Pollock
2 comentários:
estão todos muito originais mas este é o melhor.
és a maior Catarina :D
ler pela 2ª e 3ª vez ainda o torna mais fantástico.
és linda (L)
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